Com os alvores de um novo ano insinuando-se no calendário, a temporada micológica vai lentamente adormecendo. Cogumelos há todo o ano, eu sei, mas não com a mesma abundância e diversidade de espécies que caracteriza um outono típico.
Os cogumelos são seres que da diferença fazem o seu fascínio, e este expressa-se em formas de subtil capricho, em cores surpreendentes, em aromas que, mesmo quando difícies, cativam.
Em mais de vinte anos dedicados à micologia, primeiro solitariamente de máquina fotográfica ao tiracolo e cesto na mão e, mais tarde, partilhando com outras pessoas a paixão por estes seres maravilhosos, nunca em circunstância alguma senti esmorecer o encantamento de ver brotar por entre a erva de um prado ou sob a folhagem caída dos carvalhos aquela forma ou aquela cor que indiciavam um Boletus edulis, um Coprinus comatus, um Calocera viscosa...
É maravilhoso, também, ver nos olhos dos que me dão a honra de participar nas minhas "Oficinas" o mesmo brilho, o mesmo deslumbramento, ouvir sair das suas bocas as expressões de espanto perante uma forma ou uma cor inimagináveis segundos antes.
Foi o que aconteceu durante o mês de Dezembro quando tive a honra de ser convidado pelas coordenadoras do CMIA de Vila do Conde, Mariana Cruz e Luísa Rodrigues, para a realização de uma Oficina de Identificação de Cogumelos e Ervas Aromáticas. Uma, não: quatro, pois o número de incrições a isso obrigou. Doce obrigação, permitam-me que vos diga.
Foram quatro dias - 6, 13, 19 e 20 de Dezembro - que constituiram para mim uma experiência inolvidável. Primeiro, pelas pessoas que no CMIA - as duas já citadas e a que se juntou para uma colaboração formidável Amélia Guimarães, do Gabinete Florestal do Município de Vila do Conde - souberam criar com competência, empenhamento e calor humano o ambiente propício para que um grupo de desconhecidos que se juntou às dez da manhã se despedissem horas mais tarde como amigos. Durante as horas que passamos juntos, criaram-se laços que perdurarão no calendário que o tempo vai tecendo. Há rostos que ficaram gravados na minha memória como pegadas na terra húmida dos bosques dormentes na neblina de Dezembro.
Até breve, amigos, espero poder voltar a vê-los novamente com o rosto emoldurado pela árvores dos bosques, ouvir outra vez o sussuro dos vossos passos amortecidos pela folhagem multicolor que atapeta o solo da Terra-Mãe, que num gesto de infinita e espontânea prodigalidade nos vai oferecendo os seus frutos. Assim saibamos nós merecê-los.
Continuaremos ligados. Tal como escreveu Fernando Pessoa, somos "contas-entes, ligados por um fio-memória". Compete-nos a nós manter a memória viva, manter o fio ligado.
Este é um dos meus sonhos profundos.
Abraços.
Carlos Venade



2 comentários:

Manel disse...

Carlos,
Este é o primeiro texto que leio este ano e que sorte!

Que os fios da memória que falava Pessoa, criem uma rede entre os nossos espaços digitais, onde apresentamos as nossas experiências na natureza. Temos muito a aprender contigo e quero fazê-lo sempre que puder. Recentemente vi um filme, intitulado "into the wild" onde a conclusão final se aplica pefeitamente aqui: A felicidade nunca é completa se não for partilhada.
Vais ter, vamos ter um excelente ano!
Abraço
Manel

Bgi disse...

Olá Carlos

A vida é feira de nadas,
De grande serras paradas
À espera de movimento,
De searas onduladas pelo vento.

De casas de moradia caiadas
E com sinais
Dos ninhos que outrora havia, nos beirais

De poeira,
Da sombra duma duma figueira,
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira,
Como uma mãe faz a trança à filha.